A estreia no Quebrantahuesos foi esclarecedora da fama e prestígio tão falados desta clássica internacional disputada nos Pirenéus, junto à fronteira franco-espanhola. Embora sem a mística da Etapa do Tour e das mais lendárias passagens da Volta à França, ou mesmo a competência organizativa desta prova – apesar de também ser excelente –, o Quebraossos na língua lusitana (QH) tem TUDO para ser – e é! - um desafio colossal a qualquer praticante de ciclismo. É a rainha das cicloturistas espanholas: 205 km; 3 subidas míticas de alta montanha; 3500 metros de ascendente acumulado e grau crescente de dificuldade; e este ano mais de 8000 inscritos – embora «só» 7300 tenham alinhado à partida – desagradando à organização, que há muitos meses teve de deixar de fora milhares de candidatos depois de encerrarem as inscrições ao atingirem número limite em apenas três dias após a sua abertura.
Como disse, foi a minha estreia – e só posso sentir-me muitíssimo satisfeito. Mais que a própria classificação – que embora superando as minhas expectativas considero objectivo secundário num evento com tantos factores condicionantes –, foi o tempo realizado, bem dentro dos meus melhores prognósticos, que recompensou todo o esforço dispendido em 8 longos meses de preparação especificamente para este objectivo maior.
Apontara entre 6h30 e 7h00, sendo que 6h45 seria o limiar entre o «Bom» e o «Muito Bom». Resultado: 6h37 – ou seja, objectivo alcançado com nota de «Muito Bom»! Para mais, considerando a contrariedade extra do intenso calor – que a determinada altura da prova chegou aos 35º C.
Aliás, a temperatura alta que já se anunciava elevada de véspera fez-se sentir logo às primeiras horas da manhã do grande dia, antes da partida (7h30), dispensando os habituais agasalhos. A representação portuguesa concentrava-se nas várias portas de saída: o Nuno Garcia e o Jerónimo na porta imediatamente à frente dos restantes: eu, Freitas, o Zé Teixeira, o Cláudio e o Luís, estes três últimos, conterrâneos do Jerónimo em Vendas Novas.
Ao tiro de partida, à hora em ponto, desencadeou-se a correria, separando desde logo os que vinham à procura da «performance» dos que estariam «só para terminar». Todos nós alinhávamos pela... primeira. Nos primeiros 20 km, entre Sabiñanigo e Jaca, em falso plano ascendente, foram cumpridos à média de 42 km/h. Para evitar desgaste precoce, a palavra de ordem foi ir ao abrigo em grandes grupos que se aglutinavam uns aos outros, não deixando nunca cair a velocidade
A partir de Jaca, inicia-se, então, a primeira subida do QH: o Col de Somport – a melhor maneira de começarem as dificuldades. Uma montanha que dá para ir... aquecendo. Só os últimos 7 de 28 são verdadeira alta montanha. Até lá, sobe-se por patamares: rampas de 400/500 metros não muito íngremes intercaladas de planos e até de descidas rápidas, que o grupo onde eu e o Freitas estávamos desde a partida passou sem se desagregar.
Quando entraram as percentagens mais fortes, o figurino mudou radicalmente. Notou-se imediatamente que a maioria adaptou o ritmo às suas capacidades. Desde aí, com o meu companheiro na roda, não mais parámos de ultrapassar até ao alto.
Algures a meio da subida passámos pelo Jerónimo sem sequer nos apercebermos. Ele viu-nos. Nos derradeiros metros da ascensão, também alcançámos o Nuno Garcia, que me acompanhou durante toda longuíssima descida (+ de 40 km) entre o Somport e o Col de Marie Blanque.
Tempo para recuperar. Logo nos primeiros 2-3 km, a sucessão de curvas fechadas fez com que fosse impossível seguir a roda do Freitas, muito melhor descedor. Tentar seria arriscar a queda – como a terrível que se deu instantes antes de passarmos. A descida não é especialmente técnica após a fase inicial, mas é enganosa: enormes rectas a 80 km/h a terminarem em curvas cegas.
Quando terminou – com algum alívio para mim – o trio estava desfeito. No entanto, o facto de o grupo onde eu e o Nuno seguíamos ter à vista o que integrava o Freitas, facilitou a junção. Reunidos iniciámos o Col de Marie Blanque. Chegavam, pois, as primeiras GRANDES dificuldades!
A subida – que já conhecia da Etapa do Tour de 2005 – tem 10 km, com os primeiros 6 em crescendo de inclinação, de 3% e 7%, mas os últimos 4 a uma média de 11%!! Desde o início da subida, o Nuno adaptou inteligentemente o seu andamento às suas capacidades, deixando-se descair. Eu e o Freitas seguimos ao meu ritmo. Repetiu-se o cenário do Somport: foi sempre a ultrapassar – mas as diferenças ainda eram maiores. O Freitas alertou-me para o facto de a «malta estar a cortar-se?». Tinha razões para fazê-lo – a parte final da subida é duríssima! Após o primeiro dos quatros quilómetros, o Freitas também metia o seu passo e eu fui à minha vida. Transpor o Marie Blanque deixa marcas... irreparáveis. É a montanha de charneira do QH, fazendo a selecção definitiva. Não há maneira de passar por ela sem lá deixar energia preciosa. Quem está melhor ou sobe melhor, faz a diferença; quem força demasiado, paga duramente.
A rever, por mim, ter dispensado o abastecimento líquido no final da subida, que poderia tido consequências muito negativas ainda na prova e que após a mesma deixou-me à beira da desidratação. Ao falhar o abastecimento no alto do Marie Blanque, coloquei-me à mercê da sede – que nunca deverá acontecer em provas com esta exigência e sob temperaturas tão altas. Esse facto levou-me a cumprir os primeiros quilómetros do Portalet «a seco» e a entrar em deficit de líquidos de que nunca recuperei – mesmo após ter reposto os bidões na paragem seguinte.
Apesar de tudo, subi bem o longo e lindíssimo Portalet, a montanha mais temida do QB: ascensão de quase 30 km, com o mais difícil reservado para o final. Aqui paga-se e bem todos os excessos praticados antes. O Freitas «penou» aí, como disse o Miguel Marcelino, conhecedor profundo do QH. Rezam as lendas da prova, que o Portalet reclama sempre as suas vítimas que por falta de prevenção encontram nesta insuspeita montanha sem fortes inclinações enorme calvário. Diz-se que houve quem demorasse mais de 3 horas para a transpor.
Subi-a bem, a bom ritmo, desde o início, quando o grupo de cerca de 30 unidades que dez a ligação do Marie Blanque ficou reduzido a apenas... duas. Com esse parceiro partilhei o primeiro terço da subida, mas tive de abdicar, metendo o meu próprio andamento. Certamente poderia ter ido melhor logo estivesse bem hidratado. Algo que se reflectiu nos 3-4 últimos quilómetros, em que tive de baixar o andamento face a algumas más sensações, perdendo uma roda «útil». No alto, aguardava-nos o êxtase. Centenas de pessoas na estrada abriam um estreito corredor para que os ciclistas passarem, incentivando-os incansavelmente. Uns de passagem e outros à espera para acudir aos seus. Os olhares presos em nós, misturados com palavras elogiosas ao esforço e ao estilo, deixa-nos siderados de emoção e mais galvanizados para o que ainda falta percorrer! As pessoas que ali estavam percebem o empenho e a coragem que se exigem para enfrentar tamanho desafio que é uma prova de ciclismo como o QB. Só por esta experiência arrepiante, compensou ter lá estado!
Depois do Portalet, deveria ter voltado a reabastecer no posto instalado no início da descida. Não o fiz – e voltei a fazer mal! A descida é longa, mas muito menos inclinada e perigosa que a do Somport, e é intercalada do último «caramelo» da prova: o Hoz de Jaca (2,5 km a 8% de média, com rampas a mais de 10%... e mau piso).
Entrei num grupo restrito, de não mais de 10 ciclistas. Logo na primeira rampa, bem inclinada, ameaçaram-me as cãibras – coisa rara em mim e, por isso, indiciadora de falta de hidratação. Temi ficar «pregado» na subida, mas os espasmos passaram e as extremas cautelas do grupo também ajudaram. De tal modo, que no último quilómetro adiantei-me no meu ritmo, sem que ninguém me seguisse. Mas a subida parecia interminável: quando a primeira pessoa à beira da estrada disse que faltavam «só» 200 metros, faltavam mais de 700; quando o segundo afirmou que eram só mais 100, faltavam 500 de muro. Quando foi «é já ali depois desta curva», ainda faltava uma rampa de 100 metros com piso cimentado e irregular. Dureza! Finalmente no topo, reconfortou-me o apoio dos locais – mais uma vez arrepiante!
A descida é curta mas inclinada, seguindo-se um ligeiro topo, antes de voltar a descer definitivamente até aos últimos 15 km para a meta, já em terreno plano. O avanço que adquiri na subida rapidamente de esfumou – principalmente à custa da entrada em acção de dois «cavalos» de dorsal amarelo (os que em 2007 fizerem menos de 6h00 de prova – ou seja, os «maus, maus»), que surgiam de trás com o serviço em atraso. Só os dois levaram o grupo, agora de cerca de 20 elementos, a mais de 45 km/h por extensas rectas expostas ao vento, sem pedir ajuda a ninguém. Diga-se em abono da verdade que ninguém estaria em condições de a dar... Foi bom para baixar o tempo, mas à chapa do sol serviu para esgotar as minhas já curtas reservas de líquidos – daí que, as horas seguintes a ter cortado a meta, foram tudo menos agradáveis...
Agora que estou restabelecido, sobrepõe-se a tudo a enorme satisfação do êxito da primeira participação na «Doce Tortura», que irei saborear... tranquilamente... durante 12 meses.
5 comentários:
Quero aqui desejar os meus elogios (parabens) a todos os amigos que conseguiram acabar esta dificil etapa do QH.
Abraço.
Jony.
Bela etapa estão todos de parabens, não deve ter sido nada facil.
Ola amigos
Eu mesmo correndo nos Masters ponho serias duvidas se conseguiria acabar uma aventura dessas, acho que isso será inesquecivel para quem acabou.
Muitos parabens por terem concretizado a vossa aventura.
MARIO FERNANDES
Ola amigos
Eu mesmo correndo nos Masters ponho serias duvidas se conseguiria acabar uma aventura dessas, acho que isso será inesquecivel para quem acabou.
Muitos parabens por terem concretizado a vossa aventura.
MARIO FERNANDES
Bom dia a todos, então essas férias.
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